Elaborado por: Prof. Dr. Rafael Queiroz de Souza
Introdução
A qualidade da água é um elemento fundamental para a segurança no processamento dos produtos para saúde. De acordo com a Association for the Advancement of Medical Instrumentation (AAMI), a ausência de controle da qualidade água utilizada no CME pode desencadear eventos relacionados à pacientes e deterioração de recursos materiais. Estes eventos podem incluir: perda da funcionalidade de um instrumento ou equipamento, efeitos tóxicos, reações pirogênicas e infecções, limpeza e desinfecção ineficazes, e a formação de gases não condensáveis no processo de esterilização (AAMI, 2014).
Considerando os eventos descritos e suas repercussões para os serviços de saúde, este estudo tem como objetivo estabelecer relações entre os requisitos da regulação de boas práticas para o processamento de produtos para saúde e as evidências científicas relacionadas, visando demonstrar a importância garantia da qualidade da água no CME.
Controle de qualidade da água utilizada na limpeza de produtos para saúde
A limpeza é a etapa fundamental para a garantia da segurança dos produtos para saúde (Bronzatti, Souza 2022; Graziano, 2003; Alfa et al., 1996). Basicamente, seu objetivo é a remoção de resíduos químicos, sangue, proteínas, endotoxinas e outras substâncias orgânicas, com consequente redução do número de microrganismos (Ribeiro, 2010). A água permite a hidratação, o deslocamento da sujidade por meio da aspersão em lavadoras termodesinfectadoras e cavitação nas lavadoras ultrassônicas, diluição de soluções de limpeza e enxágue dos produtos para saúde (Bronzatti, Souza, 2022).
Em 2012, Resolução da Diretoria Colegiada (RDC), número 15, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) determinou a necessidade do controle de qualidade para uso no CME (Brasil, 2012):
Art. 68 O enxágue dos produtos para saúde deve ser realizado com água que atenda aos padrões de potabilidade definidos em normatização específica.
Parágrafo único. O enxágue final de produtos para saúde críticos utilizados em cirurgias de implantes ortopédicos, oftalmológicos, cirurgias cardíacas e neurológicas deve ser realizado com água purificada.
(…)
Art. 74 O CME Classe II e a empresa processadora devem realizar o monitoramento e registro, com periodicidade definida em protocolo, da qualidade da água, incluindo a mensuração da dureza da água, ph, íons cloreto, cobre, ferro, manganês e a carga microbiana nos pontos de enxágue da área de limpeza.
Para compreensão do artigo 68, é importante esclarecer o significado do “padrão de potabilidade”, que é definido como o “conjunto de valores permitidos como parâmetro da qualidade da água para consumo humano”. No Brasil, o padrão de potabilidade está descrito na Portaria de Consolidação número 05 de 2017, que consolida as normas sobre as ações e os serviços de saúde do Sistema Único de Saúde. Os valores estabelecidos na referida Portaria foram recentemente alterados pelas Portarias GM/MS número 888 de 2021 e GM/MS número 2.472 de 2021.
No ambiente destinado à limpeza, o controle de qualidade da água é necessário tanto para assegurar a eficácia da remoção da sujidade, quanto para conservação do instrumental:
- Os instrumentos cirúrgicos fabricados em aço inoxidável são submetidos a um processo chamado passivação, que os torna menos “reativos”, portanto, menos susceptíveis à corrosão (Seavey, 2015; Kaiser, Schwab, Tirey, 2000). Quando danificada, a camada passiva pode se regenerar quando exposta ao ar, porém, na presença da sujidade, esta exposição não acontece, portanto, não haverá regeneração (Kaiser, Schwab, Tirey, 2000). Determinados produtos químicos e contaminantes da água podem causar danos a camada passiva e comprometer o instrumental, inclusive os equipamentos utilizados na limpeza automatizada. Dessa forma, é recomendável verificar as orientações do fabricante dos equipamentos de limpeza quanto a qualidade da água que deve ser utilizada na limpeza.
- Em relação a remoção da sujidade, os contaminantes da água podem comprometer a eficiência dos detergentes. Em geral, as formulações de detergentes contêm surfactantes, cuja função é permitir que que sujidades insolúveis em água se tornem solúveis (Lyon, 2008). Os surfactantes interagem com os contaminantes da água da mesma forma. Durante a limpeza, a utilização de água com alta concentração de cálcio e magnésio faz com que o surfactante diminua pela formação de substâncias quimicamente inativas, reduzindo a eficiência da limpeza (Panta, Richardson, Shaw, 2021; Lyon, 2008).
No caso do último enxágue, que está descrito no parágrafo único do artigo 68, a necessidade da água purificada pode ser justificada pela ocorrência de eventos adversos, como as síndromes tóxicas do segmento anterior ocular (TASS), perdas assépticas de implantes e reações pirogênicas:
- Os casos de TASS relatados na literatura estão associados à contaminação do instrumental em decorrência da qualidade da água. Há casos envolvendo endotoxinas (Holland et al., 2000) e contaminantes inorgânicos (Hellinger et al., 2006). Embora não o artigo 74 da RDC ANVISA n. 15 não inclua a análise de endotoxinas, este parâmetro é fundamental no controle de qualidade da água purificada.
- O instrumental utilizado nas cirurgias ortopédicas apresenta grau elevado de complexidade, que facilita o acúmulo de sujidade (Blevins et al., 1999; Parada et al., 2009; Tosh et al., 2011; Lucas et al., 2015), além de endotoxinas após a limpeza e enxágue com água potável, especialmente nas fresas intramedulares e raspas de fêmur (Goveia et al., 2016). As endotoxinas também podem estar relacionadas à perda asséptica de implantes (Greenfield et al., 2005; Wang, Zhang, Zhao, 2018) e causar reações pirogênicas após cateterização cardíaca (Reyes et al., 1980; Kundsin, Walter 1980).
Em relação ao artigo 74, a RDC Anvisa n.15 não estabelece valores limite para os contaminantes descritos, dessa forma, para fins de exemplo, os serviços têm adotado parâmetros internacionais como o relatório técnico nº 34 da AAMI ou parâmetros da Farmacopeia Brasileira (Brasil, 2019) para estabelecer um plano de controle. Quanto ao monitoramento e registro dos contaminantes da água, recomenda-se que no período logo após a instalação de um sistema de tratamento, o monitoramento seja feito com intervalos menores, para que se possa conhecer a efetividade do sistema ao longo do tempo. De acordo, com a variação e tendências dos resultados, o monitoramento pode tornar-se menos frequente, pois, com base no histórico dos valores obtidos, pode-se prever e determinar a necessidade de troca de insumos e a manutenção do sistema de tratamento, visando à manutenção do padrão de qualidade da água purificada (Souza, Graziano, 2016).
SAIBA MAIS!
Acesse na íntegra o conteúdo a RDC ANVISA n.15 em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/anvisa/2012/rdc0015_15_03_2012.html
Acesse na íntegra o conteúdo da Farmacopeia Brasileira em: https://www.gov.br/anvisa/pt-br/assuntos/farmacopeia/farmacopeia-brasileira
Esterilização de produtos para saúde
A esterilização pelo vapor pressupõe o rápido aquecimento da carga pela transferência de calor decorrente da condensação do vapor, que ocorre quando a água muda do estado gasoso para o líquido, ao entrar em contato com a carga (Joslyn, 2001). No Brasil, a RDC ANVISA n.15 de 2012, estabelece o seguinte critério para água que vai ser utilizada para geração do vapor:
Art. 95 A água utilizada no processo de geração do vapor das autoclaves deve atender às especificações do fabricante da autoclave.
O teor de contaminantes do vapor pode ser influenciado pela qualidade da água utilizada na geração, portanto, há recomendações específicas para o controle de contaminantes, como o relatório técnico nº 34 da AAMI (2014) e a norma EN285 (2015). De forma geral, quando não controlados, os contaminantes do vapor podem ser tóxicos, corrosivos e gerar uma barreira entre os microrganismos e o agente esterilizante (Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, 2013). Para fins de exemplo, a investigação de um surto 8 casos de TASS após cirurgia de catarata, demonstrou que a água de alimentação do gerador de vapor e do condensado continham valores acima do esperado para sulfatos, cobre, zinco, níquel e sílica, revelando também deficiências na manutenção do gerador de vapor (Hellinger et al., 2006). Outro problema relevante são os gases não condensáveis dissolvidos na água, como CO2 e O2. Nesse caso, um desgasificador pode ser instalado antes da entrada da água no gerador de vapor da autoclave, para que a água de alimentação atinja as tolerâncias especificadas (Souza et al., 2022; EN285, 2015).
A falta de um controle adequado da qualidade da água utilizada para esterilização pode resultar também em incrustações nas tubulações e no gerador de vapor, além de manchas diversas e corrosão tanto na câmara quanto no instrumental; comprometendo os recursos materiais do serviço.
SAIBA MAIS!
Você encontrará mais detalhes sobre a qualidade do vapor no artigo: https://revista.sobecc.org.br/sobecc/article/view/721
Considerações finais
As evidências científicas e relatos de eventos adversos demonstram a importância da garantia da qualidade da água utilizada no processamento de produtos para saúde. Dessa forma, recomenda-se que os Comitê de Processamento de Produtos para Saúde – CPPS realizem a definição de um plano para controle da qualidade da água, manutenção dos sistemas de tratamento e planos de ação corretivos, em parceria com o serviço de engenharia clínica.
Referências
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Bronzatti JAG, Souza RQ. Water for cleaning medical devices. Self-study series. Healthcare purchasing news. 2022 Feb. Available from: https://educationhub.hpnonline.com/wp-content/uploads/2022/01/2022_CEU.61e6e27d09963.pdf
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